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De solidões e de fé "pagã"

Lá vou eu folheando o Evangelho de Marcos (7:24ss) mais uma vez. A história da mulher siro-fenícia sempre me incomodou. E ainda incomoda porque não sei como mais demonstrar às pessoas que Jesus faz de tudo para perder. Perder não no sentido de perder, mas no sentido de estar sempre disposto a explicitar que a fé não pode ser enclausurada dentro de uma cerca religiosa. Ela está para além de todos os conceitos e afirmações acerca dela. Daí, resolve perder não por si, mas por causa de quem diz que a fé "deve seguir essa jornada determinada e determinante". Ele resolve perder para demonstrar que não é bem assim como dizem. Essa fé é um risco. Jesus sempre soube disso e a posicionava de acordo com a declaração de outros, como no caso do centurião romano e desta personagem - uma MULHER siro-fenícia.

Lemos naquele trecho sobre uma fé de fora que acessa o Jesus de fora de um novo-quem-sabe-enredo-judaico. Jesus quer conversar com as pessoas do "lado de fora". Os que são de dentro sofrem com sua maneira tão ousada de falar. Para outros, maneira poderosa como nenhum outro havia falado.

Jesus serpenteia no caminho das novidades, ou de um novo olhar e interpretação para o velho. Mas o que chama atenção é que a maneira que trata a mulher é maneira velha: "o pão não é dado aos cachorros". Cachorro é a maneira pejorativa de falar dos gentios. Cachorro! Naquele caso, cadela!

Aparentemente, não há nada de novo ou escandaloso aqui para um "bom" judeu. É tudo normal. O trato é normal.O que é anormal? A mulher vencer. E vence com folga. Jesus, segundo o texto, libera aquela mulher para retornar a casa e encontrar sua filha sã. 

Algumas considerações:

Jesus queria estar só (e acho que fico com apenas esta consideração).

Jesus tinha seus momentos com as multidões. Às vezes conseguia ficar só com os doze. Outras, apenas com três. Nas madrugadas tinha o seu momento em oração. Parece que Jesus está exausto e quer descansar. Não quer estar com as multidões. Não quer se incomodado. Obviamente que os discípulos não iriam, naquela feita, incomodá-lo. Aliás, os discípulos eram encarregados de não deixar ninguém incomodar o mestre, nem mesmo os cegos de Jericó.

Perto da cidade de Tiro parecia um bom lugar para descansar. Ninguém por perto. Região de não-judeus. Enfim, tudo para um bom retiro. Que nada! Tinha demônios lá. O demônio encontra primeiro a filha de uma mulher e a mulher sente-se só. No texto não tem marido. No texto não tem filho mais velho. Ela está só com a menina que não está só. A menina tem companhia. Indesejada, mas tem. A mãe, solitária, vê-se sem forças para reagir e acudir a menina em tão sofrido momento.

Jesus quer solidão. A mãe, amedrontada, desesperada, corre para tentar ajuda no tão falado Jesus. Ser incomodado era tudo o que menos queria. Mas o foi. Escorrega pelos discípulos e sem bater à porta, entra. Suspira, chora, as duas mãos seguram os cabelos para trás numa expressão facial de dar pena. 

O Mestre a encara e não diz absolutamente nada. Ele não quer falar. Não quer se cansar. Não quer fazer nenhum tipo de milagres. Está exausto. Precisa mesmo de umas férias.

A mulher irrompe os suspiros e desabafa sobre o problema de sua filha. 

Ao que Jesus descarrega: "E eu com isso? O pão é dado a quem se senta à mesa por direito. E você não se assenta à mesa por direito nem por coisa nenhuma."

Mulher: "Eu como do que cair da mesa. Quem sabe alguém generoso deixe cair..."

Jesus: "Não... ninguém deixará cair nada para você."

Mulher: "Então, que eu coma o que deixarem cair desastradamente. Sem perceber o que fez."

Jesus: "Ah, mulher! Grande é a tua fé! Porque a verdade é que as pessoas da mesa, pessoas 'de dentro' deixam cair deste pão desastradamente e conscientes que o pão está caindo. Eles não comem. Eles querem que o pão apodreça na mesa, mas que ninguém ouse pegar uma migalha sequer. Coma, portanto, do pão à vontade, mulher! Encha sua bolsa e vá para casa ceiar com sua menina. Ela está com fome e está, agora, SOZINHA. E estar sozinha, na verdade, era tudo o que você queria para ela, não é mesmo? Mas tudo o que a menina mais quer é sua companhia. Vá para casa e deixe-me só. Deixe-me só. Leve tudo da mesa. Deixe-me só."

A mulher sai sem agradecer. Vira as costas. Os discípulos ainda tentam interrogá-la, mas consegue com sua força de mãe abandonar aqueles braços e com a fragilidade da alma enganar o caminho. Ninguém consegue segui-la por mais de cinquenta metros. Ela corre ligeiramente. Chega em casa. A porta está aberta. Seu objetivo é o quarto da filha. Pronto. Ela está lá. Quieta na cama.

Ambas se abraçam. A mãe tem novo choro. A filha não entende, mas sente-se segura e farta.

Jesus fica lá... só. Sua mesa vazia. 

Um texto de grandes falas irônicas do mestre. Ele bem sabia a quem queria "atingir". 

Você... aí "de dentro"... você entendeu, não é mesmo?

NA GRAÇA
LELLIS

Um comentário

Cleinton disse...

Uma passagem bíblica muito bonita. Está entre as minhas "clássicas".

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