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Fé e Lucidez ainda poderão comungar?


Passo pouquíssimo tempo frente à tv. Algumas vezes, enquanto procuro documentários, filmes ou noticiários, deparo-me com alguns canais religiosos. Fico ali, parado, inerte, "bobolhando", pensando em nada.

Minha esposa sempre disse: "Por que você assiste a esses programas, meu amor? Isso não te faz bem." E delicamente, toma o controle de minha mão e troca de canal - geralmente por outro semelhante: comédia ou drama. Sou agradecido porque o conteúdo e qualidade mudam radicalmente.

Pronto, meu amor. Cheguei aonde pretendia: já não consigo assistir a nenhum programa evangélico na TV. E quando digo nenhum, digo nenhum mesmo. Já consigo, sozinho, trocar o canal (isso sem tomar remédios e nem visitas ao psicanalista ou pastor - consegui sozinho mesmo, eis meu testemunho de cura e libertação). E hoje, pela tarde, foi a última vez, prometo. Não assistirei aos programas nem pra rir, nem pra chorar ou pra análise do discurso religioso. Não mais. Conto o motivo, que é pequeno, mas fora a gota d’água.

Certa mãe ligou para um programa - até então desconhecido para mim (meu Deus, mais um!). O bispo atendeu e divulgou a concentração de fé em São Paulo que será no final de semana; deu espaço para que a sua cliente fizesse o pedido de oração:
- "Meu filho teve um acidente. A perna dele está inchada."
O bispo, prontamente respondeu:
-"Vamos orar...” e ora.

Não tenho estômago para descrever a oração e dos tantos demônios do inchaço que ele cita. (Trata-se de uma cartilha generosa de demônios do inchaço, vocês não têm noção.)

Prezados leitores, será que algum dia a fé e a lucidez poderão unir suas mãos? Minha pergunta é retórica e respondo um sonoro NÃO.

Caminhamos para trás, para uma fé da magia, do engano, do inimigo do tempo e da natureza; de uma fé belicosa contra a medicina, contra a ciência, contra o fato, contra o real. Meu Deus! Como conseguem lutar contra a realidade? Por que desejar em oração o sumiço repentino do inchaço de uma perna acidentada?

O grande problema é que esse sumiço vai acontecer. É problema porque esse maldito inchaço será curado pelo próprio tempo com a ajuda de uma pomada barata; e a mãe desesperada será escrava de um sistema de fé longe, bem longe da lucidez. Ela acreditará e fará com que seus familiares creditem ao bispo, bem como à denominação, todo o louvor. Será ainda crido e divulgado que o bom negócio é lá, que a boa fé é lá, que o real e a lucidez não importam quando o brado de vitória é decretado.

Não só a igreja evangélica, mas muitos cristianismos continuam (atentem: continuam) vivendo uma fé que desconhece a lucidez.

E o que seria fé e lucidez?

Em primeiro momento, fé e lucidez para um não é o mesmo que fé e lucidez para o outro. Não comungam da mesma ideia. Enquanto um se julga lúcido, o outro condena e vice-versa.

Numa síntese, creio que a "boa fé" é daquele que tem o poder de criticá-la com lucidez. E não podemos nos esquecer que o cristianismo é a religião que mais sofreu o impacto da secularização. Significa que temos plenas condições de criticar a nós mesmos através dos fatos, da realidade que a Modernidade viu e nos mostrou.

Rogo a Deus para que essa autocrítica tenha espaço na mente de cada indivíduo. Só assim, teremos condições de criticar (o que nos distingue dos animais é o poder da crítica) e não mais enriquecer um império que cresce absurdamente no Brasil – esse império sim, um verdadeiro “demônio do inchaço”.

NA GRAÇA,
LELLIS



3 comentários

Peroratio disse...

:o)
I "rogo a Deus" ao final só pode ser ironia, não? Por que, cá entre nós, você não crê que Deus, que podia ter feito algo antes, se pode fazer depois, deixou a coisa chegar onde chegou só para você orar e ele corrigir tudo, né?
Vai, não. Vai mudar nada, não. Pode melhorar. Pode piorar. Mas Deus não vai fazer nada a respeito.
E, se fizer, participa igualzinho da zona toda...

NELSON LELLIS disse...

Boa sacada, Osvaldo!

NELSON LELLIS disse...

Há um texto de teatro que li há anos. Ele não possuía nenhuma pontuação. Era reto. Sem marcas. Imagina isso na construção do ator. É uma maravilha e um perigo simultaneamente.
Retirar as aspas do "rogo a Deus", deixa livre pra construções, né?
É claro, não havia pensado no texto de teatro antes, mas agora o uso para salvação própria. :)

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