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O rei, a rã e o resto (da história)


Vez por outra, usamos textos para justificar nossas buscas e pensamentos. Alguns certos ou equivocados. Não os textos, mas o lugar deles diante nossas construções. É possível que Baumann não justifique tanto por aqui, mas a ideia faz a mesma trilha. Segue, portanto, pequeno trecho do livro Modernidade Líquida, do sociólogo polonês Zigmunt Baumann:
Cras, em latim, quer dizer “amanhã”. A palavra também costumava ser semanticamente elástica, não muito diferente do famosamente vago mañana, para incluir o “mais tarde” – o futuro como tal. Crastinus é o que pertence ao amanhã. Pro-crastinar é por alguma coisa entre as coisas que pertencem ao amanhã. Por algo lá implica imediatamente que o amanhã é o lugar natural dessa coisa, que a coisa em questão não faz parte por direito do amanhã. Por implicação, ela faz parte de outro lugar. Qual? Obviamente o presente. Para ser destinada ao amanhã, essa coisa primeiro teve que ser tirada do presente ou teve barrado seu acesso a ele. “Procrastinar” significa não tomar as coisas como elas vêm, não agir segundo uma sucessão natural de coisas. Contra uma impressão que se tornou comum na era moderna, a procrastinação não é uma questão de displicência, indolência ou lassidão; é uma posição ativa, uma tentativa de assumir o controle da sequência de eventos e fazê-la diferente do que seria caso se ficasse dócil e não se resistisse. Procrastinar é manipular as possibilidades da presença de uma coisa, deixando, atrasando e adiando seu estar presente, mantendo-a à distância e transferindo sua imediatez. (Modernidade Líquida, p.179)
Apesar de Baumann percorrer pelos caminhos da modernidade, a palavra procrastinar remete-me a um texto bíblico. O livro de Êxodo conta sobre o faraó que não quis deixar o povo sair para o deserto adorar ao seu Deus. Em troca disso, Moisés (o chamado para a condução ao deserto) dizia – e isso por dez vezes – sobre sinais que cairiam no território egípcio caso isso não se concretizasse. E há um em especial que chama atenção: o sinal das rãs. Diz o texto que havia rãs pra tudo o que é lado, e Moisés pergunta ao rei: “Queres que eu ore a fim de que o palácio fique livre das rãs?”, e o rei lhe respondeu: “Amanhã.” Amanhã? Por que amanhã? Por que não hoje? Agora?! Dormir mais uma noite com as rãs?

Será que isso pertenceria ao amanhã?

Talvez as rãs não incomodassem tanto quanto a tempestade de pedras. As rãs saltavam sobre mesas, camas, dentro dos fornos, mas o que pensava o rei ao dizer: “pode deixar para amanhã sua oração”?

Algumas possibilidades passam por minha cabeça e uma delas é: o rei é rei e tem o poder de transferir a imediatez de certa questão. Pode modificar os planos de hoje para amanhã. O tempo pertence a ele; governa sua vida diante das ofertas que entrega aos seus deuses. Na verdade, não é deus, é ele. É o rei quem fabrica seu tempo, seu deus, suas dádivas, suas intempéries. O rei não diz “não há Deus”. Admite. Há Deus. Deus está aqui, acolá, mas quem decide o que deus decide é o próprio rei. Quem diz amém para que a coisa aconteça é o rei. Não importam os tempos, se diz deixa pra amanhã, é porque tem certeza de que amanhã, as coisas de hoje poderão acontecer. Afinal, é um deus.

O rei é livre para escolher. Nada o prende. Nem as ameaças divinas, porque sabe que uma oferta maior   traz como aliado o deus inimigo. O rei está livre para decidir. Deus não manda nele. Moisés não manda nele. Sua ética é contrária aos desígnios de qualquer deus que não faça parte da sua cartilha. Por isso, é livre para escravizar hoje e deixar suas liberdade das rãs para amanhã. Escravizar o torna capaz, poderoso e rico sobre outros povos. Dorme mais uma noite com as rãs, mas não deixa seu poder, sua intervenção no mundo, sua esfera de autoridade, seu compromisso consigo mesmo e com as ondas míticas devotadas no altar de sua satisfação espiritual.

E fico aqui me questionando se o cristianismo, durante séculos, não dormiu com as mesmas rãs que outrora eram incômodos e ferozes sinais, mas que, no decorrer dos anos, foram totalmente domesticadas. 

NA GRAÇA
LELLIS

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